quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Por que seguir?


Porque estou gritando agora e ninguém me ouve. Porque eu mesma não escuto a minha voz. Porque o meu sussurro jorra dores e paz. Porque não há razão nem loucura. Porque não quero. Porque quero mais que sempre. Porque sou. Porque me atirei do vigésimo andar e descobri que sei voar. Porque nunca fecho as janelas da casa. Porque não sou. Porque danço com a música imprevisível do vento e não caio. Porque amanheço quando morro. Porque meus olhos não escondem segredos. Porque o coração canta, soprano, no mais alto tom que alguém já cantou. Porque decifro vozes que se foram, sem medo. Porque não desisto apesar do pranto. Porque não me calo. Porque choro baixinho para regar o mundo. Porque ainda não tenho todas as flores em mim. Porque pinto jardins de sonhos em qualquer parede. Porque há calos em minhas mãos e gosto, nos pés também. Porque todos os alados são minhas asas, mesmo os urubus, mesmo os anjos, os demônios, os rouxinóis e os beija-flores. Porque corto as unhas bem curtinhas para não rasgar o véu delicado da vida. Porque ando devagar e despenco enquanto corro. Porque nunca paro para rezar. Porque não há salvação, mas existem belos caminhos. Porque não chamo o amor e carrego o seu nome nas veias. Porque as vísceras são desenhos doidos traçados por estrelas cadentes. Porque o sangue não coagulou ainda. Porque não acredito na eternidade. Porque levei trinta anos para me conhecer e todo dia descubro que sou outra e sei que é tarde demais para encontrar o não-existo. Porque não há explicação. Porque busco a verdade com a fome de um recém-nascido para suportar todas as mentiras. Porque dói cortar os pulsos, mas não tenho pena de parar de respirar. Porque errei tantas e tantas vezes e estou pronta a errar de novo. Porque amo viver só por saber que tem um fim. Porque amo simplesmente. Porque meu ventre está repleto de pólen. Porque a insanidade queima e a lucidez também. Porque meu corpo não me pertence e é todo meu. Porque a beleza é e os feios estão apenas. Porque acredito. Porque não creio em nada somente para descobrir avessos. Porque facilmente esqueço das coisas para me espantar infinitas vezes com os mesmos milagres. Porque guardo os bons momentos na pele para sentir o cheiro das alegrias quando suo. Porque os perfumes do caminho constroem mais do que as palavras escritas. Porque os dizeres mais dentro são sempre mais belos, mas só estando nu e descalço é que se consegue escutar. Porque existem brilhos mesmo no mais negro breu. Porque há sim passarinhos que entoam músicas divinas para as estrelas e outros que chegam para beijar a aurora. Porque a lua muda toda noite. Porque fico muda de dor e ainda canto. Porque não gosto de anestesias. Porque fui feita de carne crua, mas cravei plumas em minhas costas e encontrei um socorro. Porque nunca se tem volta. Porque basta mudar o foco para acariciar novos céus. Porque não nasci de cesariana, eu vim. Porque se pode sentir o gosto de tudo mesmo usando apenas o olfato. Porque quando era criança olhava incansavelmente para o sol sem medo de ficar cega, na esperança de reter a luz nas retinas e doá-la ao redor quando preciso. Porque ainda hoje tenho pensamentos de infância e me agarro a eles com a força da minha alma velha e cansada. Porque me alimento da lama também. Porque não sei de nada. Porque o mar não morre. Porque nem todos os grilhões conseguem amarrar um espírito que masca pedaços de liberdade colhidos nos pequeninos instantes. Porque muitas coisas ainda não têm nome. Porque as lágrimas escorrem é do peito. Porque o riso é possível. Porque vale a pena. Porque sou nada. Porque tudo é tão simples quanto se pode ser. Porque sou bicho de natureza azul. Porque acendo e apago muitas vezes num movimento de rotação. Porque posso matar sedes que desconheço. Porque mesmo um beco sem saída sempre vai dar em algum lugar, basta saltar os muros. Porque os pássaros acordaram para me contar os mesmos segredos que melodiam às manhãs. Porque a toda noite estão presas incontáveis estrelas e quando vão embora deixam o dia como regalo. Porque anoitecerá de novo. Porque ainda há muito a fazer. Porque a poesia jamais terá fim. Porque somos apenas um intervalo. Porque sim, porque sim.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Sobre as minhas rugas

(lembrando Maiakovski, para servir de carta)

Conheci o punhal antes do falo
O silêncio antes do grito
Sangrei todos os partos ao avesso

Enfiaram-me o fim e o começo
quando o tempo era ainda criança

Calma!
A dor não me cabe fora do verso
De resto, sou dança

A cor do meu fado é vermelho
Vermelho-sangue

Não gostas?
Preferes o azul?

O rio eu também sou
------------------Passo

Confunde-te esse azul?
O riso que não se esconde?
Já não tem medo da tristeza

O meu amor é bruto
Vem da natureza
Nasceu antes do fruto
E vingou
Muito antes da minha morte

Eu sei, não me pareço

------------a tua menina
Aquela da fotografia
Mas é que no retrato
Todo riso é eterno

E o punhal não aparece na foto
Enterrado no corpo

Onde dói o passado
É só na gente mesmo
E no espelho
Que viu primeiro a ferida aberta
No instante não-futuro

Do presente ainda quero tudo
O masculino e o feminino
O carnal e o absurdo
O falo e o útero

A cicatriz
O sangue
O verso
O parto
O amor
O grito
O riso
A dor

Só joguei fora o punhal
Não preciso dele nessa luta
Já tenho o meu fado vermelho
Para dançar essa cor

-----------------------filha da puta

No corpo, só me lambe o gozo
Ces´t la vie
Ser feliz?

Me cresceu infantilmente a arte de transfundir
E brincando fiz

---------------maior do que a morte
------------------------------o sorriso da cicatriz

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Moça com brinco de pérola


O menino na calçada
O menino me queria
Desejada, desejava

Como se tudo no mundo fosse vizinho do fim
Os seus olhos de balão grudados em mim
Não, seus olhos de menino e o balão era eu

Só a cola em suas mãos pregavam seus sonhos
ao espaço

---------------------de sobra, era a verdade
Os escombros, a sujeira, a tristeza, o descaso

E eu

Que de passo em passo mais sangrava a ferida
De perdê-lo ou de vê-lo?

E pensar que em minha dor não cabe nem metade
Do pesadelo envelhecido no menino que nunca nasceu

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Razão


Seria até fácil responder
o que sou eu e o que vim fazer no mundo
Ah, não fossem tantos eus no mesmo encontro
imundos, sangrando, querendo e morrendo
--------------------------------a cada segundo

e por isso mesmo amando cada defunto
como se todo o tempo em sua pequeneza
não fosse nada menos do que a própria vida

Não há tristeza na terra que me leve
a única coisa que realmente tenho
ainda que de transbordamento só me reste o amor que dôo

Dôo do verbo doer