terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Auto de Natal


Fazia sol eu acho. Ou não sei se era douradice exacerbada de alma. Sei que o menino sorria, apesar de tudo. O cenário era um pedaço rasgado de um mundo de outros, tantos, distinto do porto em que vivo, misturando às auroras perdidas as ferroadas do veneno alheio e do meu próprio sebo. As roupas sujas tinham um cheiro de caldo de gente que precisa suar muito para encarar o pão que se devora a cada dia.

Não, acho que chovia. Ou não sei se era pingo de dor oculta no tempo sem saída de todas as coisas belas e tristes que nascem, crescem, reproduzem e morrem. Sei que o menino sorria, apesar de tudo. Meu Deus, como era bonito em sua fealdade pedra sentindo!

Moramos juntos uma eternidade nessa troca que eu entregava em meu corpo magro, estremecido, que não sabe nada do suor do menino além do cheiro acre que não se come. Não era nojo, eu juro, era fraqueza, a desferida dessa luta cravada nele, ele que sorria apenas.

Queria me dar ali, inteira, entregar meu oco como se ele me pedisse o osso, o pó, a essência dessa vidinha que minto a cada passo, sorrindo para dar o que não tenho, a dor que me falta sendo minha, farta por amar demais. E ele ali, cobrindo todo o mundo com seu avesso. Não me pedia nada.

Agora eu lembro, fazia sol, tenho certeza. O menino teceu os raios com seus dedinhos e num sopro que entorpeceu o universo me fez tocar com a língua aquela coisa banal e arriscada, que nesse vazio egoísta eu vinha descuidadamente pintando de cinza. As palavras às vezes me assustam. Esperança é um jeito cheio de mistério de se amanhecer alguém.

Hoje fui amanhecida.

Em vez de Feliz Natal, fiquei achando mais bonito dizer amém...

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

“Felicidade clandestina”

para Emília, Lucila, Josana, Solange, Aninha, Neusinha, Manuca, Bolinho, Gisela, Glória e todo ventre repleto de arte do planeta.

Ontem conheci Gisela. Nem sei desse tempo assim dizendo, mas será quase todo dia sempre ontem porque decidi que é um desses encontros que a gente leva eternamente misturados à pele, bem perto. Com uns hojes de intervalo.
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Nos olhos de Gisela há uma fonte, não, uma nascente, ainda virgem de homens e bichos. Ela faz doces e salgados há, se não me engano, uns dez anos. Caminha, vende por ali, conhece gente e se despede, chega e se dá, anda todo o centro do Recife, todo santo dia. Dos seus pés faz o arroz, o feijão, o purê em seu fogão, mata a fome da casa, seu espaço sagrado. Sua melhor amiga, Glória, tem problemas com o filho, tava querendo se jogar da janela, Gisela ao seu lado falava da beleza da vida sobrevivente a tudo, exalando em tudo, mais verdade que qualquer face do feio. Gisela também é mãe, quer dizer, mais mãe do que tudo no mundo. E olha que o mundo ensinou a ela umas palavras em alemão, outras em italiano, uns escorregos no espanhol e um monte de outras coisas.
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É mãe de Bárbara, a sua liberdade, apesar de dizer que depois que povoou seu ventre, nunca mais teve sossego. “Depois que a gente se torna mãe, a gente tá aqui tomando uma cerveja, num domingo de tarde, olhando o Parque 13 de Maio, conversando, mas a cabeça tá em casa, ou na rua, depende de onde brote o sentimento do rebento”. Gisela ensina, cuida, protege, explica as coisas inexplicáveis com a sabedoria de quem sabe na alma, quase em silêncio. Estudou até a quinta série, mas quer Bárbara em outro salto. Por isso faz das horas e dos seus doces e salgados uma doação de amor a quem mais tiver a sorte de encontrá-la por aí.
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Glória tem uma barraquinha onde vende suas coisas para sustentar-se na vida, em frente às Lojas Americanas. Dá para encontrar lá também os doces e salgados de Gisela, que ela pode deixar com a amiga havendo alguma solicitação. No sorriso dessa moça há alguns dentes que morreram, umas cicatrizes enrugadas, uma mãe que se foi doendo cedo demais para ela, há seis anos atrás, e uma paz inexplicável, um carinho sem limites, um sopro sentido na semente da raiz.
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Conversando com Gisela percebi pela primeira vez como maternidade e eternidade se encontram também morfologicamente, seja sendo palavra ou corpo mesmo. E das letras que sobram ainda se escreve mãe... Se não fosse o umbigo a primeira cicatriz, talvez Gisela não cozinhasse tão bem...
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Ela fala de Jesus, não de Deus. É que ela leva suas crenças na carne, na dor de quem caiu e teve a sorte do soprinho para aliviar o sangue do corte antes mesmo de qualquer certeza de cura.
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Não usa saias, não mais agora, diz que precisa andar ultimamente com seus “cambitos” escondidos, “infelizmente”. É que teve um grave problema há um tempo atrás, o médico recomendou repouso, mas Gisela precisava andar, precisava fazer seus quitutes, precisava ir para a rua, pensando em Bárbara para amar estar no mundo. A ousadia dos seus passos deixou uma marca que toma quase a sua canela inteira e numa dança inexplicável um coração foi desenhado no meio da pele enrugada e escurecida. Um coração que grita numa ausência de cor, de melanina, um transbordamento de tudo. Uma cicatriz em forma de coração é uma marca para poucos, ou será a única razão de tudo na lida?
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Gisela me entregou sem pena sua água límpida, seus olhos, chorou na despedida e me deu de presente mais um sopro do destino.
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Gisela é uma artista em desenhar cicatrizes com o peito. Acho que toda obra de arte é um pouco isso, um desenho de cicatrizes. Ou isso será o único sentido da vida?
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Ah Gisela, foi um prazer imenso conhecê-la!