domingo, 24 de junho de 2018

A beleza

 

Ele me olhava como se quisesse me roubar o segredo do umbigo primeiro, o caldo do éter primordial que me deu de presente um rosto e um corpo que se colocam antes de mim no espaço da vida míope das imagens. A imagem, esse general dos nossos tempos de novas ditaduras ocultas - e outras devassadas na cara, carregado de sua própria luz e tão cheio do nada necessário para que apenas com a nossa própria escuridão se consiga olhar... Ele desejava a beleza como algo que se toca, que se pega, que se guarda nas mãos, sem ver que beleza e amor - seja lá o que isso for, estão entrelaçados, emaranhados, nem sequer sobrevivem em duas palavras diferentes, assim como todos os seus contrários. Essa coisa que só se sente, não se vê exatamente, híbrida, intercamuflada, como a gente. E eu, que cato o avesso, me agarro ao invisível e procuro o que não vejo, eu que não sei nada do exato, ia me perdendo do seu desejo.
_ Ravi, há pessoas, seus momentos, seus tormentos, razões ocultas que as fazem esconder sua própria beleza tão profundamente que terminam afeando valiosos reflexos sem perceber. Não procure em mim o que é de você. Quando deixaremos de ser tão idiotas? E aí me incluo porque o que penso nem sempre me guia. O belo? Sempre está em tudo na mesma intensidade com que o desenterramos desse vazio que levamos cheio do nosso dentro. O belo? É. A disposição para cavar é a primeira erupção antes do nascimento das asas. A escolha pelo voo depende individualmente, de cada um, e só pode ser ouvida quando aprendemos a lamber o silêncio com um prazer carnal. Bom, no final, que é também o começo, isso sempre acontece depois de qualquer espécie de orgasmo, às vezes na cara, às vezes na alma. A beleza? Você já se olhou no espelho hoje? Calma, antes de ir, use as unhas para rasgar as entranhas que te cobrem. Liberta os bichos que te comem e morde a vida com os dentes ensanguentados desse monstro mais bonito que todas as flores do mundo. Todas aquelas que chamamos de outras superfícies são reflexos das vertigens, do giro incansável que dançamos em outro tempo, por trás dos nossos pobres olhos. Ah, meu querido Ravi, se você reparar bem enquanto estou rindo, verá que os pedaços de carne e sangue que me sujam a face são o único alimento sincero desse rosto e desse corpo que exalo.
_ Se a beleza dói?
_ Dói tanto quanto a vida. Mas tudo dói, mesmo as alegrias, é que a gente acostumou a pintar a dor de chumbo.

terça-feira, 27 de março de 2018

como se fosse um sopro


em dias de mansidão
desconfio fortemente
ser nossa missão mais divina
dar o que o coração diz no instante
com a intensidade da morte

se cuidando em todos os corpos
no intento de saúde dar-se...
e às vezes receber carinho oferecendo tudo

Mas isso é quando a guerra cessa
esse ínfimo entre estrondos e escombros
que cuido aqui de deixar vazar

como uma brisa somente
ou esses milagres da vida
que sempre estão

ah, se viver não doesse tanto
teria a mesma potência imensa
de ser tão sagrado estar aqui?

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

clamor




eu não estou nua
nasci nua e naturalmente
exerço esse estado todo dia
mas aqui, agora, enquanto falo
não, eu não estou nua

se estivesse, a polícia talvez
invadisse meu corpo,
o teatro, o museu, a casa
e me levasse algemada
braços forçados para trás

cobririam meus peitos e o sexo
com um pedaço de pano
ou um casaco qualquer
(dariam um jeito de achá-lo
entre os presentes)

seria escandaloso, obsceno
vergonhoso para alguns até
já não se pode mais
despir-se e olhar nos olhos
a arte é uma arma perigosa

não, eu não estou nua
o que você imagina sem ver
é o bicho que sou
clamando na voz apenas
na palavra, a sua nudez inata

uma oração ao milagre
de sermos corpo no mundo
e podermos sentir o vento
e a luz por todos os poros
...quando estamos nus

quanto ao estupro
nosso de cada dia...
insisto despindo o avesso
enquanto carne, viva
em sua nudez inata

sábado, 13 de janeiro de 2018

degeneradamente viva


quando em casa já não se assa o pão
e a vontade de partir não é suficiente
para simplesmente abrir o gás

o forno fechado é um buraco
e esquecer de mim é tão fácil
quanto a fecundação dos vermes

ainda assim, a luta me precede
a beleza entranhada nos ossos
no enjoo, no cheiro da podridão

a violência da voz proclama
a loucura do que pode nascer
dentro de tudo que não se vê

seja eu, outro ou você
apesar da gente, apesar do mundo

a vida pede passagem, ainda
o pão quer o gesto das mãos

amassando o encontro, punhos ativos
e o calor aceso de alguma entrega

seja amor ou grito
escuto e rasgo
como se fosse meu

gostaria de não existir tão crua agora
mas hoje libertei um assombro inato

degenerada como sou
uma igual também
entre os vermes que mato

e a força do que pode nascer
dentro de tudo que não se vê

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Por que seguir?

Porque estou gritando agora e ninguém me ouve. Porque eu mesma ainda não escuto toda a minha voz. Porque o meu sussurro jorra dores e paz. Porque não há razão nem loucura. Porque não quero. Porque quero mais que sempre. Porque sou. Porque me atirei do vigésimo andar e descobri que sei voar. Porque nunca fecho as janelas da casa. Porque não sou. Porque danço com a música imprevisível do vento e não caio, despenco e volto. Porque amanheço quando morro. Porque meus olhos não escondem segredos. Porque o coração canta, soprano, no mais alto tom que alguém já cantou. Porque decifro vozes que se foram, sem medo. Porque não desisto apesar do pranto. Porque não me calo e sou amante do silêncio ao mesmo tempo. Porque choro baixinho para regar o mundo todos os dias. Porque ainda não tenho todas as flores em mim. Porque pinto jardins de sonhos em qualquer parede. Porque há calos em minhas mãos e gosto, nos pés também. Porque todos os alados são minhas asas, mesmo os urubus, mesmo os anjos, os demônios, os rouxinóis e os beija-flores. Porque corto as unhas bem curtinhas para não rasgar o véu delicado da vida. Porque ando devagar, giro, salto e corro. Porque nunca paro para rezar e rezo o caminho todo. Porque não há salvação, mas existem belas veredas. Porque não chamo o amor e carrego o seu nome nas veias. Porque as vísceras são desenhos incertos traçados por estrelas cadentes na barriga. Porque o sangue não coagulou ainda. Porque não acredito na eternidade. Porque levei quarenta anos para me conhecer e todo dia descubro que sou outra e sei que é tarde demais para encontrar o não-existo. Porque não há explicação. Porque busco a sinceridade com a fome de um recém-nascido para suportar todas as mentiras e sou honesta para comigo mesma de uma maneira quase cortante. Porque dói cortar os pulsos, mas não tenho pena de ir-me. Porque errei tantas e tantas vezes e estou pronta a errar de novo. Porque adoro viver só por saber que tem um fim. Porque amo simplesmente. Porque meu ventre está repleto de pólen. Porque a insanidade queima e a lucidez também. Porque meu corpo não me pertence e é todo meu. Porque a beleza é e os feios estão apenas. Porque acredito. Porque não creio em nada somente para descobrir avessos. Porque facilmente esqueço das coisas para me espantar infinitas vezes com os mesmos milagres. Porque guardo os bons momentos na pele para sentir o cheiro das alegrias quando suo. Porque os perfumes do caminho constroem mais do que as palavras escritas. Porque os dizeres mais dentro são sempre mais belos, mas só estando nu e descalço é que se consegue escutar. Porque existem brilhos mesmo no mais negro breu. Porque há sim passarinhos que entoam músicas divinas para as estrelas e outros que chegam para beijar a aurora. Porque a lua muda toda noite. Porque fico muda de dor e ainda canto. Porque não gosto de anestesias. Porque fui feita de carne crua, mas cravei plumas em minhas costas e encontrei um socorro. Porque nunca se tem volta. Porque basta mudar o foco para acariciar novos céus. Porque não nasci de cesariana, eu vim. Porque se pode sentir o gosto de tudo mesmo usando apenas o olfato. Porque quando era criança olhava incansavelmente para o sol sem medo de ficar cega, na esperança de reter a luz nas retinas e doá-la ao redor quando preciso. Porque ainda hoje tenho pensamentos de infância e me agarro a eles com a força da minha alma velha e cansada. Porque me alimento da lama também. Porque não sei de nada. Porque o mar não morre. Porque nem todos os grilhões conseguem amarrar um espírito que masca pedaços de liberdade colhidos nos pequeninos instantes. Porque muitas coisas ainda não têm nome. Porque as lágrimas escorrem é do peito. Porque o riso é possível. Porque vale a pena. Porque sou nada. Porque tudo é tão simples quanto se pode ser. Porque sou bicho de natureza azul, vermelha, amarela, branca e negra, e honro. Porque me acendo e apago muitas vezes num movimento de rotação. Porque posso matar sedes que desconheço. Porque mesmo um beco sem saída sempre vai dar em algum lugar, basta saltar os muros. Porque os pássaros acordaram para contar a qualquer um os mesmos segredos que melodiam às manhãs. Porque a toda noite estão presas incontáveis estrelas e quando vão embora deixam o dia como regalo. Porque anoitecerá de novo. Porque ainda há muito a fazer. Porque a poesia jamais terá fim. Porque somos apenas um intervalo. Porque sim, porque sim...

sábado, 3 de junho de 2017

canto aos que não amo e para um homem bom


cantai por mim
oh coração em desespero

para que eu encontre o perdão
em minha sensibilidade morta

devo muito aos que não amo
e é por eles que choro, ainda

era eu o animal
abatido em ritual
a lavar teus pesadelos

era meu o sangue oferecido
escorrendo em teus cabelos

manchando as pedras da calçada
o corpo, o chão, era eu...

também sou da falange dos outros
e danço com todos eles

acostumei desde cedo
à voz rude do inferno

Jesus!
não te posso dar
toda a fé dos meus pés
nem todo o meu abismo
(não suportaríamos tanta luz)

cantai por mim
oh coração em desespero

para que eu encontre o perdão
em minha sensibilidade morta

terça-feira, 28 de março de 2017

da febre do osso lacrimal

(em noite de Lua Nova, escura, misturada)

nômade do deserto
movedora por sina
tecedora de caminhos

criatura divina
quem te falou
que era seguro nascer?

chora criança, chora
o choro ajuda a acordar
quando os pesadelos pesam

mas chora com doçura
que o sal não morre
enquanto houver o mar