quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O grito na voz do poeta de versos mudos

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Não estava pensando na felicidade, não costumo me concentrar muito nela, dá tristeza ficar querendo ver seu rosto aéreo e esparso. O sorriso se pintou naturalmente, como a alegria tácita e gritante das folhas de uma árvore que recebem sem esperar o afago de uma brisa calma num dia de calor, em brasa. Um sorriso lento, desse que não se faz de uma vez, vai se fazendo, se fazendo, calmamente, até dizer que sim.
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Um homem caminhava pela calçada. Vestia uma bermuda anêmica, já doente de tão gasta. A camisa afolozada de tanto repuxo sofrido cada vez que ele tentava assentá-la em sua imensa barriga. Na cara redonda estavam plantados olhos que em um minuto escancaravam o abrigo mais seguro. Olhos de alma vergada pela sabedoria da dor.
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O outro faz tempo que está na beira do rio, o cão sem plumas, contemplando a aorta triste, quase morta, em sua pungente luta para ainda alimentar as veias da cidade que não pára. Com sua cefaléia crônica, amado pela poesia constante em seu artesanato métrico.
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No mundo em volta, palavras, corpos, carros, movimentos desgrudados ainda.
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O homem tinha nas mãos alguns papéis velhos. Andávamos em direções opostas com um mesmo destino, porque João Cabral não estava entre nós dois por acaso. Eu timidamente fingia apenas passar. Ele parou, deu batidinhas no ombro do poeta, cumprimentou respeitosamente seu nariz com um beijo doce, e sentou ao lado. Tudo tão natural que meu passo ficou mais tímido de seguir do que de ficar. Sentei também.
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Ele apertou as folhas nas mãos e nos encarou como se estivesse oferecendo com prazer uma lasca do seu couro curtido: “Ia falar apenas com ele, mas já que você chegou, se sente sim, pode ficar. Podia contar a vocês do meu primeiro beijo, porque ali fui batizado poeticamente sem nem ainda ter conhecido a poesia mesmo. Mas depois que ela morreu, assassinada por meu pai, grávida pela primeira vez, resolvi não contar mais essa história. É como se todo o amor do meu peito tivesse se prendido para sempre à vida, digo à vida toda, a tudo que é vivo, como vocês aqui nessa rua, nessa manhã. Foi depois do acontecido. Cavei tão fundo em mim mesmo para achar algum resto de beleza que terminei tirando os entulhos do peito. Aí eu virei poeta, sabem como é, mas em segredo, porque minhas mãos são calejadas demais, minha pele muito marcada, meu corpo é pesado, não fico mesmo bonito segurando a caneta. Posso recitar um verso?”. Respondi que sim com a cabeça porque minha voz não cabia em mais nada.
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Silêncio. Não, silêncio e olhos, o que forma um monte de palavras. Versos inteiros latejavam em sua boca fechada pelas retinas. Seus papéis amarelados, intactos de tintas, uma língua feita apenas da vontade de dizer mais. Em volta o momento, a brisa, para sempre nossa, da rua, do rio, do fedor da cidade que nos lambe e nos devora para depois vomitar filhotes renascidos, repleta de pequenos pedaços de felicidade dispersos ao longo da estrada. Agora tudo grudado, inerente. O homem não sabia ler, nem escrever, mas sua poesia entontecia de tanta força.
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E a felicidade nos olhava também, com seu rosto aéreo e esparso, ali e além, de mãos dadas, dançando naturalmente com o grito, o azul e o desespero, o canto e o fato, o perdão e a faca. Girava tão rápido a roda que se calava todo sentido. Toda a transparência do mundo era revelada na rima de palavras desvestidas de letras e alfabetos. Lágrimas se erguiam ao infinito.
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Foi nessa hora que o sorriso se pintou inteiro por fim. Como se a tristeza também merecesse um aceno, um sim, a delicadeza de um toque, um afago, diante da imensidão da vida. Pedi que ele esperasse e fui em casa pegar meu João Cabral para ler uns versos ao seu ouvido. Quando voltei ao encontro, ele simplesmente já tinha partido.

4 comentários:

Anônimo disse...

Mais um belíssimo texto.
Obrigado!
Marco

Magna Santos disse...

Lindo! E mais lindo ainda quando sei agora que você é a bailarina que encantou o poeta (ou o contrário? Não importa).
Encontro perfeito, tanto que até quem não participou, transborda de alegria.
Tudo de bom, Sílvia.
Felicidades mil!!!!
Beijo.
Magna

Luna Freire disse...

Sílvia, quando dois poetas se encontram, o mundo ganha muito mais cores. E, quando dois poetas se casam, (nossa!!!) as palavras calam. Não conheço sua face bailarina, nem sequer sua face, mas conheço suas palavras e as de Samaroni. E, por elas, posso dizer que este é um casamento promissor! Seja feliz!!!

Josias de Paula Jr. disse...

O texto está fantástico!! Que história...
Apenas ontem, pelo Sementeiras, descobri que você é a Silvinha que se casou com Sama! E eu que a tempos venho frequentando e pisando e vendo ser moldado e remodelado esse Barro Cru... sem saber que você era a Silvinha!
Como disse Fabiana aqui (e eu lá no Sementeiras), deu-se um casamento de poetas. E isso é raro, raríssimo! E isso é bonito pra danar.