terça-feira, 1 de dezembro de 2009

“Felicidade clandestina”

para Emília, Lucila, Josana, Solange, Aninha, Neusinha, Manuca, Bolinho, Gisela, Glória e todo ventre repleto de arte do planeta.

Ontem conheci Gisela. Nem sei desse tempo assim dizendo, mas será quase todo dia sempre ontem porque decidi que é um desses encontros que a gente leva eternamente misturados à pele, bem perto. Com uns hojes de intervalo.
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Nos olhos de Gisela há uma fonte, não, uma nascente, ainda virgem de homens e bichos. Ela faz doces e salgados há, se não me engano, uns dez anos. Caminha, vende por ali, conhece gente e se despede, chega e se dá, anda todo o centro do Recife, todo santo dia. Dos seus pés faz o arroz, o feijão, o purê em seu fogão, mata a fome da casa, seu espaço sagrado. Sua melhor amiga, Glória, tem problemas com o filho, tava querendo se jogar da janela, Gisela ao seu lado falava da beleza da vida sobrevivente a tudo, exalando em tudo, mais verdade que qualquer face do feio. Gisela também é mãe, quer dizer, mais mãe do que tudo no mundo. E olha que o mundo ensinou a ela umas palavras em alemão, outras em italiano, uns escorregos no espanhol e um monte de outras coisas.
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É mãe de Bárbara, a sua liberdade, apesar de dizer que depois que povoou seu ventre, nunca mais teve sossego. “Depois que a gente se torna mãe, a gente tá aqui tomando uma cerveja, num domingo de tarde, olhando o Parque 13 de Maio, conversando, mas a cabeça tá em casa, ou na rua, depende de onde brote o sentimento do rebento”. Gisela ensina, cuida, protege, explica as coisas inexplicáveis com a sabedoria de quem sabe na alma, quase em silêncio. Estudou até a quinta série, mas quer Bárbara em outro salto. Por isso faz das horas e dos seus doces e salgados uma doação de amor a quem mais tiver a sorte de encontrá-la por aí.
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Glória tem uma barraquinha onde vende suas coisas para sustentar-se na vida, em frente às Lojas Americanas. Dá para encontrar lá também os doces e salgados de Gisela, que ela pode deixar com a amiga havendo alguma solicitação. No sorriso dessa moça há alguns dentes que morreram, umas cicatrizes enrugadas, uma mãe que se foi doendo cedo demais para ela, há seis anos atrás, e uma paz inexplicável, um carinho sem limites, um sopro sentido na semente da raiz.
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Conversando com Gisela percebi pela primeira vez como maternidade e eternidade se encontram também morfologicamente, seja sendo palavra ou corpo mesmo. E das letras que sobram ainda se escreve mãe... Se não fosse o umbigo a primeira cicatriz, talvez Gisela não cozinhasse tão bem...
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Ela fala de Jesus, não de Deus. É que ela leva suas crenças na carne, na dor de quem caiu e teve a sorte do soprinho para aliviar o sangue do corte antes mesmo de qualquer certeza de cura.
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Não usa saias, não mais agora, diz que precisa andar ultimamente com seus “cambitos” escondidos, “infelizmente”. É que teve um grave problema há um tempo atrás, o médico recomendou repouso, mas Gisela precisava andar, precisava fazer seus quitutes, precisava ir para a rua, pensando em Bárbara para amar estar no mundo. A ousadia dos seus passos deixou uma marca que toma quase a sua canela inteira e numa dança inexplicável um coração foi desenhado no meio da pele enrugada e escurecida. Um coração que grita numa ausência de cor, de melanina, um transbordamento de tudo. Uma cicatriz em forma de coração é uma marca para poucos, ou será a única razão de tudo na lida?
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Gisela me entregou sem pena sua água límpida, seus olhos, chorou na despedida e me deu de presente mais um sopro do destino.
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Gisela é uma artista em desenhar cicatrizes com o peito. Acho que toda obra de arte é um pouco isso, um desenho de cicatrizes. Ou isso será o único sentido da vida?
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Ah Gisela, foi um prazer imenso conhecê-la!

6 comentários:

Magna Santos disse...

Ah, mas não é todo mundo mesmo que consegue enxergar, melhor, sentir assim a felicidade escondida no cotidiano.
Que lindo! Que sensibilidade a tua!
Que Deus te nutra sempre, Silvinha, destas coisas tão essenciais à vida.
Beijão bem grandão.
Magna

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

Belo texto.

Carlos Maia disse...

Puta merda, Aivlis, que poema da Porra!!!

Desculpe os palavrões, mas não achei palavras que pudessem conter o meu entusiasmo pelo que você escreveu!

Parabéns!

Você é Linda!

Ana Braga disse...

Obrigada por dividir Gisela, sua poesia e possibilidades, viu? Muito mais amor e proteção em 2010!

Mama disse...

Povoar o ventre. Muito mais do que FETO - AFETO, amor inteiro. Único.
Amo você.