quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Devaneio numa madrugada em que sangro

Isso é sobre mim mas em algum lugar, talvez, no fundo, também se encontre com algo sobre você, que agora chegou aqui. O movimento começa pelo ventre e testemunho invisíveis como quem dança cortando as unhas para não rasgar o véu delicado da vida.

Devaneio numa madrugada em que sangro e agradeço o milagre celebrando a generosidade da moça vestida de assombro que acena plantando uma sombra num quintal aberto... Sinto que é preciso ocupar e ocupar-se de coisas sem antes, sinto que é preciso mudar a experiência das mãos com a seiva da terra... Sinto que algo perdeu o rumo e caminho assim mesmo, nua e molhada de muitas fontes.

As solas dos meus pés pisaram descalças muitos chãos além Marrakech, muito depois; nas areias do Saara, Tamil Nadu e aqui a memória em meus cascos está prenhe de auroras, estrelas e eclipses solares e lunares em céus plurais... Fui às senzalas, às matas, vi a chuva cobrir de flores, como milagres da noite, a terra seca do Sertão e montei cavalos sem selas e arreios bem cedo ainda. Comi o pão que o diabo amassou por escolha, medo e enfrentamento e sobrevivi sendo a água nas cicatrizes dos santos... Sorri aos mortos e aprendi a dormir em paz, no escuro, sem disfarces nem rezas... Sinto que todas as memórias nos agoras de um dia podem transbordar rios esquecidos e acordar galáxias, transmutar signos, plantar gestos-sementes em todos os chãos...

Vejo os homens, vejo as ruas, os postes, os carros, cimentos, tormentos, a fome... Não nomeio o que sinto por incapacidade de síntese e por esperança. Falo com gatos, serpentes e espaçonaves e nos encontros com seres da mesma língua são os olhos que dizem mais, palavra ou silêncio, sinto que tudo se acende, passado, presente e futuro, mas nem todo mundo ouve os sonhos por excesso de gritos por dentro.  Por eles ajoelho e choro, como quem rega uma nascente que não se sabe, esparge, mais nada.

Teimosa em acreditar, despertei no silêncio algumas técnicas de amassar estrumes com as mãos abertas, ancorar intentos, percorrer insone outros mares mais profundos que a minha solidão... Um outro tempo se aproxima e quero estar pronta para morrer em paz... E digo isso mirando descuidadamente o infinito, sorrindo, com a fé da criança a encher de tranças os longos cabelos da velha no espelho, preparando com zelo o banho de ervas quentinho para o próximo parto e saboreando sem culpa o seu copo de café com rapadura e fumaça.

Agradeço o milagre celebrando a generosidade da moça vestida de assombro que acena plantando uma sombra num quintal aberto... Sinto que é preciso ocupar e ocupar-se de coisas sem antes, sinto que é preciso mudar a experiência das mãos com a seiva da terra... Sinto que algo perdeu o rumo e caminho... Já está chegando a lua crescente outra vez.

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