terça-feira, 23 de junho de 2009

Para quem não acredita em milagres

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Ele devia ter uns doze anos quando me viu, às 4h48, na Avenida Cruz Cabugá, esquina com a Mário Melo. Inventei a hora pela falta de relógios nas proximidades. Digo doze pelo tamanho das pernas, na vastidão dos olhos tinha mais, mais um tanto. Nunca fui boa com os números nem com as medidas. Faltava pouco para chegarmos ao cemitério, nenhum enterro, pássaros, mais nada. Nem eu nem ele estávamos indo pra lá, mas conheço bem o caminho, passo por ele todos os dias, vejo as árvores mais altas que os muros, fortes, filhas da terra de gentes idas. Nem me chamou de tia, como seria de praxe, perguntou o meu nome. O sol estava nascendo como se diz por aí, ainda era um rasgo no escuro. Tem coisas que são bonitas sem querer, dizer que o sol está nascendo todo dia, por exemplo, engrandece delicadamente a vida. O pai tinha falecido há duas semanas. A mãe já fazia tempo, morreu no parto. Ele ficou, desde sempre, se acostumou a cavar entre escombros para achar seus pedaços.

Caminhamos, tomamos café, comemos pão, tropeçamos nos bêbados que ainda traziam em si a mistura do álcool e da solidão da noite. Dois desconhecidos, insones por distintos motivos, rindo juntos como se tudo começasse ali. Era Flávio sua graça, me dizendo em voz baixa, desaperreada, em coro com as retinas, que tudo no mundo se emenda, se completa, se enlaça, circula. Ele não dizia que o sol nasce, mas que mergulha na noite na dança dos astros que rodam de mãos dadas, mesmo que não tenham mãos. Achei lindo. Lembrei do infinito Antonio Porchia: “Nada termina sin romperse, porque todo es sin fin”.

Não ficou desamparado, herdou o fiteiro do pai, respeitava seu quinhão. Flávio tinha uma riqueza que é impossível juntar numa só vida, vinha de outros tempos. Talvez um pedacinho do próprio Porchia, por acaso, tenha mergulhado nele: “Mi padre, al irse, regaló medio siglo a mi niñez”. Nos despedimos. O Recife ficou cor de Flávio.

As ruas andavam. Cortando a cidade como as veias de um corpo. De madrugada tem muita gente que anda, só por andar, sem olhar para os lados. Também tem gente que passa com olhos de esperanças idas há muito e se esquece de ver. Gente sentada na praça, amanhecendo apenas. Dois homens conversavam e riam, pareciam amigos de longas datas, na hora exata passavam em frente a uma casa amarela, já perto das Graças, meu porto do instante naquele dia e em alguns outros. Um de calça cor de ouro, outro camisa cor de sol, Flávio reluzia em tudo.

Antes de entrar e fechar a porta da manhã, um encontro surdo. Um cego caminhava com seu cão-guia e bengala. Tão seguro que fez meus olhos se sentirem filhos dos girassóis em seu peito, não do seu escuro. Tudo isso se tocou em uma hora e doze minutos e entendi que até o tempo descansa as pálpebras de vez em quando, morre um tiquinho, nos abandona um pouco. Nesse dia fui livre até a hora de dormir e as portas e janelas não eram mais que palavras enchendo a paisagem da cidade que se cria sozinha, se vira como pode, se dá com um riso em troca de um pão e um café, traz anos inteiros nos séculos de um momento apenas e desenha o mundo todo com as dores de Flávio e de Porchia, costurando belezas em cima das cicatrizes. Eu, um grãozinho de areia na cidade viva. “Estar com alguien verdadero es casi um milagro”. Eu acredito.

3 comentários:

Magna Santos disse...

Deus do céu, ler algo assim nessa manhã (tarde já) chuvosa de segunda, quando ainda estou recém-chegada de viagem. Desconfio que não cheguei ainda. Ou talvez precise viajar mais.
Muito lindo tudo que você escreveu.
Obrigada.
Beijos.
Magna

Samarone Lima disse...

Concordo com Magna.
barbapapa.

Luna Freire disse...

Palavras verdadeiras também são milagres. E fazem milagres. Obrigada por esse texto.