terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Auto de Natal


Fazia sol eu acho. Ou não sei se era douradice exacerbada de alma. Sei que o menino sorria, apesar de tudo. O cenário era um pedaço rasgado de um mundo de outros, tantos, distinto do porto em que vivo, misturando às auroras perdidas as ferroadas do veneno alheio e do meu próprio sebo. As roupas sujas tinham um cheiro de caldo de gente que precisa suar muito para encarar o pão que se devora a cada dia.

Não, acho que chovia. Ou não sei se era pingo de dor oculta no tempo sem saída de todas as coisas belas e tristes que nascem, crescem, reproduzem e morrem. Sei que o menino sorria, apesar de tudo. Meu Deus, como era bonito em sua fealdade pedra sentindo!

Moramos juntos uma eternidade nessa troca que eu entregava em meu corpo magro, estremecido, que não sabe nada do suor do menino além do cheiro acre que não se come. Não era nojo, eu juro, era fraqueza, a desferida dessa luta cravada nele, ele que sorria apenas.

Queria me dar ali, inteira, entregar meu oco como se ele me pedisse o osso, o pó, a essência dessa vidinha que minto a cada passo, sorrindo para dar o que não tenho, a dor que me falta sendo minha, farta por amar demais. E ele ali, cobrindo todo o mundo com seu avesso. Não me pedia nada.

Agora eu lembro, fazia sol, tenho certeza. O menino teceu os raios com seus dedinhos e num sopro que entorpeceu o universo me fez tocar com a língua aquela coisa banal e arriscada, que nesse vazio egoísta eu vinha descuidadamente pintando de cinza. As palavras às vezes me assustam. Esperança é um jeito cheio de mistério de se amanhecer alguém.

Hoje fui amanhecida.

Em vez de Feliz Natal, fiquei achando mais bonito dizer amém...

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

“Felicidade clandestina”

para Emília, Lucila, Josana, Solange, Aninha, Neusinha, Manuca, Bolinho, Gisela, Glória e todo ventre repleto de arte do planeta.

Ontem conheci Gisela. Nem sei desse tempo assim dizendo, mas será quase todo dia sempre ontem porque decidi que é um desses encontros que a gente leva eternamente misturados à pele, bem perto. Com uns hojes de intervalo.
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Nos olhos de Gisela há uma fonte, não, uma nascente, ainda virgem de homens e bichos. Ela faz doces e salgados há, se não me engano, uns dez anos. Caminha, vende por ali, conhece gente e se despede, chega e se dá, anda todo o centro do Recife, todo santo dia. Dos seus pés faz o arroz, o feijão, o purê em seu fogão, mata a fome da casa, seu espaço sagrado. Sua melhor amiga, Glória, tem problemas com o filho, tava querendo se jogar da janela, Gisela ao seu lado falava da beleza da vida sobrevivente a tudo, exalando em tudo, mais verdade que qualquer face do feio. Gisela também é mãe, quer dizer, mais mãe do que tudo no mundo. E olha que o mundo ensinou a ela umas palavras em alemão, outras em italiano, uns escorregos no espanhol e um monte de outras coisas.
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É mãe de Bárbara, a sua liberdade, apesar de dizer que depois que povoou seu ventre, nunca mais teve sossego. “Depois que a gente se torna mãe, a gente tá aqui tomando uma cerveja, num domingo de tarde, olhando o Parque 13 de Maio, conversando, mas a cabeça tá em casa, ou na rua, depende de onde brote o sentimento do rebento”. Gisela ensina, cuida, protege, explica as coisas inexplicáveis com a sabedoria de quem sabe na alma, quase em silêncio. Estudou até a quinta série, mas quer Bárbara em outro salto. Por isso faz das horas e dos seus doces e salgados uma doação de amor a quem mais tiver a sorte de encontrá-la por aí.
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Glória tem uma barraquinha onde vende suas coisas para sustentar-se na vida, em frente às Lojas Americanas. Dá para encontrar lá também os doces e salgados de Gisela, que ela pode deixar com a amiga havendo alguma solicitação. No sorriso dessa moça há alguns dentes que morreram, umas cicatrizes enrugadas, uma mãe que se foi doendo cedo demais para ela, há seis anos atrás, e uma paz inexplicável, um carinho sem limites, um sopro sentido na semente da raiz.
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Conversando com Gisela percebi pela primeira vez como maternidade e eternidade se encontram também morfologicamente, seja sendo palavra ou corpo mesmo. E das letras que sobram ainda se escreve mãe... Se não fosse o umbigo a primeira cicatriz, talvez Gisela não cozinhasse tão bem...
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Ela fala de Jesus, não de Deus. É que ela leva suas crenças na carne, na dor de quem caiu e teve a sorte do soprinho para aliviar o sangue do corte antes mesmo de qualquer certeza de cura.
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Não usa saias, não mais agora, diz que precisa andar ultimamente com seus “cambitos” escondidos, “infelizmente”. É que teve um grave problema há um tempo atrás, o médico recomendou repouso, mas Gisela precisava andar, precisava fazer seus quitutes, precisava ir para a rua, pensando em Bárbara para amar estar no mundo. A ousadia dos seus passos deixou uma marca que toma quase a sua canela inteira e numa dança inexplicável um coração foi desenhado no meio da pele enrugada e escurecida. Um coração que grita numa ausência de cor, de melanina, um transbordamento de tudo. Uma cicatriz em forma de coração é uma marca para poucos, ou será a única razão de tudo na lida?
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Gisela me entregou sem pena sua água límpida, seus olhos, chorou na despedida e me deu de presente mais um sopro do destino.
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Gisela é uma artista em desenhar cicatrizes com o peito. Acho que toda obra de arte é um pouco isso, um desenho de cicatrizes. Ou isso será o único sentido da vida?
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Ah Gisela, foi um prazer imenso conhecê-la!

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O girassol

para Garibaldi Otávio

Lá fora o sol
Com seu cheiro de vida
Aqui o tempo, os homens
As palavras ainda
No ventre
E essa felicidade
Triste e sola
De sangrar no escuro
Como quem liberta um deserto
No exílio

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Tácito prazer

foto e escultura de Silvia Góes
escultura feita em Auroville, nascida do encontro com Jivatman, um grande mestre


Não há céus nem lábios
Que meus dedos desconheçam

Em meu corpo descobriram
Mapas inteiros de países, mares, canteiros

As flores sem perfume
Os cactos, os loucos, jardineiros

As linhas da vida
Os pulsos cortados
Os punhos cerrados
As línguas mais putas

Homens e mulheres de todos os sexos
Pais, filhos, netos, suas casas, suas lutas

Assim brotaram asas
Assim aprendi a amar

Como quem doa a seiva da vida
Lambuzando as próprias mãos

domingo, 25 de outubro de 2009

Prateada

Para João, o cão debaixo da pele, de uma bailadora

A beleza lacerou
Todas as minhas facas

Ando por aí
Indefesa, ferida

E leve como a lâmina
Andaluzcinando e andaluzcinando-se

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Canto aos pés


Deram-me sapatos de chumbo
Acho que para descer do céu
Ou talvez para me proteger
Aí com pena, neles teci asas
Ainda hoje caminho descalça
Às vezes, quando me sou, vôo
Ah, os sapatos?

Já são pássaros

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O grito na voz do poeta de versos mudos

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Não estava pensando na felicidade, não costumo me concentrar muito nela, dá tristeza ficar querendo ver seu rosto aéreo e esparso. O sorriso se pintou naturalmente, como a alegria tácita e gritante das folhas de uma árvore que recebem sem esperar o afago de uma brisa calma num dia de calor, em brasa. Um sorriso lento, desse que não se faz de uma vez, vai se fazendo, se fazendo, calmamente, até dizer que sim.
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Um homem caminhava pela calçada. Vestia uma bermuda anêmica, já doente de tão gasta. A camisa afolozada de tanto repuxo sofrido cada vez que ele tentava assentá-la em sua imensa barriga. Na cara redonda estavam plantados olhos que em um minuto escancaravam o abrigo mais seguro. Olhos de alma vergada pela sabedoria da dor.
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O outro faz tempo que está na beira do rio, o cão sem plumas, contemplando a aorta triste, quase morta, em sua pungente luta para ainda alimentar as veias da cidade que não pára. Com sua cefaléia crônica, amado pela poesia constante em seu artesanato métrico.
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No mundo em volta, palavras, corpos, carros, movimentos desgrudados ainda.
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O homem tinha nas mãos alguns papéis velhos. Andávamos em direções opostas com um mesmo destino, porque João Cabral não estava entre nós dois por acaso. Eu timidamente fingia apenas passar. Ele parou, deu batidinhas no ombro do poeta, cumprimentou respeitosamente seu nariz com um beijo doce, e sentou ao lado. Tudo tão natural que meu passo ficou mais tímido de seguir do que de ficar. Sentei também.
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Ele apertou as folhas nas mãos e nos encarou como se estivesse oferecendo com prazer uma lasca do seu couro curtido: “Ia falar apenas com ele, mas já que você chegou, se sente sim, pode ficar. Podia contar a vocês do meu primeiro beijo, porque ali fui batizado poeticamente sem nem ainda ter conhecido a poesia mesmo. Mas depois que ela morreu, assassinada por meu pai, grávida pela primeira vez, resolvi não contar mais essa história. É como se todo o amor do meu peito tivesse se prendido para sempre à vida, digo à vida toda, a tudo que é vivo, como vocês aqui nessa rua, nessa manhã. Foi depois do acontecido. Cavei tão fundo em mim mesmo para achar algum resto de beleza que terminei tirando os entulhos do peito. Aí eu virei poeta, sabem como é, mas em segredo, porque minhas mãos são calejadas demais, minha pele muito marcada, meu corpo é pesado, não fico mesmo bonito segurando a caneta. Posso recitar um verso?”. Respondi que sim com a cabeça porque minha voz não cabia em mais nada.
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Silêncio. Não, silêncio e olhos, o que forma um monte de palavras. Versos inteiros latejavam em sua boca fechada pelas retinas. Seus papéis amarelados, intactos de tintas, uma língua feita apenas da vontade de dizer mais. Em volta o momento, a brisa, para sempre nossa, da rua, do rio, do fedor da cidade que nos lambe e nos devora para depois vomitar filhotes renascidos, repleta de pequenos pedaços de felicidade dispersos ao longo da estrada. Agora tudo grudado, inerente. O homem não sabia ler, nem escrever, mas sua poesia entontecia de tanta força.
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E a felicidade nos olhava também, com seu rosto aéreo e esparso, ali e além, de mãos dadas, dançando naturalmente com o grito, o azul e o desespero, o canto e o fato, o perdão e a faca. Girava tão rápido a roda que se calava todo sentido. Toda a transparência do mundo era revelada na rima de palavras desvestidas de letras e alfabetos. Lágrimas se erguiam ao infinito.
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Foi nessa hora que o sorriso se pintou inteiro por fim. Como se a tristeza também merecesse um aceno, um sim, a delicadeza de um toque, um afago, diante da imensidão da vida. Pedi que ele esperasse e fui em casa pegar meu João Cabral para ler uns versos ao seu ouvido. Quando voltei ao encontro, ele simplesmente já tinha partido.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Manga rosa


Sim azul, vem
Meu corpo te cabe
Sou feita de carne
E abrigo

Chega descalço
A fantasia de céu
Hoje se desveste
Em cada esquina

Não há perigo
São apenas seios

------------- línguas
E curvas talhadas
Pelo anjo negro

Pisa firme
Mas sem doer
Derramando as pedras
Os sussurros do leste
E as granadas
Em meus cabelos
Sujos e acesos

Sim, é noite
Eu sei
Ela não me deu escolhas
Não agora
Há fogo e perfume
Lavando meus pés
Todo santo dia

Respiro amarelos
E passos

Giro como quem morre
Danço como quem mata
Assassina
Em latidos e gozos
À velha senhora

Trepando invisíveis
Com a suculência da fome
E a alegria fatal
De quem descobre o prazer
Na mangueira do quintal
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do mundo

(Granada - 19/08/09)

domingo, 2 de agosto de 2009

O perdão do primeiro anjo


Que morte?
Do que estás falando nuvem banal?

À noite tua saliva
Celebrando a vida

Agora o sol a facadas
Esculpindo meu corpo
Perfurando mapas
Arrancando com força
A pele antiga

Escorro na terra
A calda das brisas

Agora que o suor
Cheira a sangue e sal
E as asas descansam grávidas

Toda sombra em meu ventre
Qualquer sombra
É só um oásis

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Aurovilianas

segunda frrase:
A sagração do pó

A aspereza sagrada das mães de qualquer passo
Enterrada neste barro antes de todas as cores
Anterior à vida que envolve seus corpos tão nus
Ainda:
--------------- Independente das águas, das faltas, das heras

São elas os anjos das esquinas, das praças,
Das estradas que agora se insinuam vestidas
De pastos. Exibindo homens, vacas aladas,
Pássaros eternos esculpidos por fadas
Com cem olhos azuis
E suas pequenas asas cansadas

Pássaros caminhantes.
(O céu não suportaria ser riscado por
uma beleza tão pura. Elas sim.)

Eles às vezes pesam seu corpo sobre a sua dureza
Insolentes. Apenas para gozarem seu dom,

Sua formosura, num sentimento mais alto

Elas cinzamente só nutrem o espaço
Imobilidade aparente, guardam o pó de todas as almas
Do presente, do passado, do suor a ser derramado
E a certeza ancestral de toda terra, em qualquer estado:

---------------- Alheia ao alcance de todo vôo, há sempre uma pedra
---------------- Haverá sempre uma pedra

sábado, 18 de julho de 2009

Aurovilianas

primeira frase:
A purificação das asas

Há terras demais sob estes pés
Pedras distantes irrompem os cascos
Feridas se agitam e impelem o vôo

Trezentas espécies de árvores desconhecem
Horizontes mais próximos que o céu
O centro é o único sentido neste mundo em espiral

Às patas descalças já tão sujas
Pergunto por barros, por pujas*, por tempos
Recebo por fim a resposta de um deus:
----------------------------------------- os passos

*Oração ritual de purificação

terça-feira, 23 de junho de 2009

Para quem não acredita em milagres

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Ele devia ter uns doze anos quando me viu, às 4h48, na Avenida Cruz Cabugá, esquina com a Mário Melo. Inventei a hora pela falta de relógios nas proximidades. Digo doze pelo tamanho das pernas, na vastidão dos olhos tinha mais, mais um tanto. Nunca fui boa com os números nem com as medidas. Faltava pouco para chegarmos ao cemitério, nenhum enterro, pássaros, mais nada. Nem eu nem ele estávamos indo pra lá, mas conheço bem o caminho, passo por ele todos os dias, vejo as árvores mais altas que os muros, fortes, filhas da terra de gentes idas. Nem me chamou de tia, como seria de praxe, perguntou o meu nome. O sol estava nascendo como se diz por aí, ainda era um rasgo no escuro. Tem coisas que são bonitas sem querer, dizer que o sol está nascendo todo dia, por exemplo, engrandece delicadamente a vida. O pai tinha falecido há duas semanas. A mãe já fazia tempo, morreu no parto. Ele ficou, desde sempre, se acostumou a cavar entre escombros para achar seus pedaços.

Caminhamos, tomamos café, comemos pão, tropeçamos nos bêbados que ainda traziam em si a mistura do álcool e da solidão da noite. Dois desconhecidos, insones por distintos motivos, rindo juntos como se tudo começasse ali. Era Flávio sua graça, me dizendo em voz baixa, desaperreada, em coro com as retinas, que tudo no mundo se emenda, se completa, se enlaça, circula. Ele não dizia que o sol nasce, mas que mergulha na noite na dança dos astros que rodam de mãos dadas, mesmo que não tenham mãos. Achei lindo. Lembrei do infinito Antonio Porchia: “Nada termina sin romperse, porque todo es sin fin”.

Não ficou desamparado, herdou o fiteiro do pai, respeitava seu quinhão. Flávio tinha uma riqueza que é impossível juntar numa só vida, vinha de outros tempos. Talvez um pedacinho do próprio Porchia, por acaso, tenha mergulhado nele: “Mi padre, al irse, regaló medio siglo a mi niñez”. Nos despedimos. O Recife ficou cor de Flávio.

As ruas andavam. Cortando a cidade como as veias de um corpo. De madrugada tem muita gente que anda, só por andar, sem olhar para os lados. Também tem gente que passa com olhos de esperanças idas há muito e se esquece de ver. Gente sentada na praça, amanhecendo apenas. Dois homens conversavam e riam, pareciam amigos de longas datas, na hora exata passavam em frente a uma casa amarela, já perto das Graças, meu porto do instante naquele dia e em alguns outros. Um de calça cor de ouro, outro camisa cor de sol, Flávio reluzia em tudo.

Antes de entrar e fechar a porta da manhã, um encontro surdo. Um cego caminhava com seu cão-guia e bengala. Tão seguro que fez meus olhos se sentirem filhos dos girassóis em seu peito, não do seu escuro. Tudo isso se tocou em uma hora e doze minutos e entendi que até o tempo descansa as pálpebras de vez em quando, morre um tiquinho, nos abandona um pouco. Nesse dia fui livre até a hora de dormir e as portas e janelas não eram mais que palavras enchendo a paisagem da cidade que se cria sozinha, se vira como pode, se dá com um riso em troca de um pão e um café, traz anos inteiros nos séculos de um momento apenas e desenha o mundo todo com as dores de Flávio e de Porchia, costurando belezas em cima das cicatrizes. Eu, um grãozinho de areia na cidade viva. “Estar com alguien verdadero es casi um milagro”. Eu acredito.

sábado, 13 de junho de 2009

Triste

(número 1)
Mario Benedetti
tradução de Silvia Góes

peço desculpas ao meu querido Benedetti e a quem mais o destino atrair até aqui, fiz a tradução sabendo que ela levaria para sempre algo de mim contigo, peço desculpas, mas não sei sentir de outro jeito.

Pela memória vagamos descalços
seguimos o vulto da chuva
até a tristeza, nosso destino inato

A tristeza, casa dos desastres da alma
Ou seja, o melhorzinho de nós mesmos
digamos esperanças, sacrifícios, amores

A tristeza, não há quem a devasse
é transparente como um raio de lua
fiel a determinadas alegrias

Nascemos tristes e morremos tristes
mas no intervalo amamos corpos
cuja triste beleza é um milagre

Vamos descalços em peregrinação
triste tristeza cheia de graça
tua saliva doce nos acolhe

O vulto da chuva nos conduz
até o inato destino que sempre foi
tristeza enamorada e clandestina

E aí, rodeada de teus frágeis dogmas
de tuas lágrimas secas / de tua era de sonhos
nos abraças como o ventre do prazer

sexta-feira, 5 de junho de 2009

A dançadeira

Para minha avó Alcina, que sem querer, me ensinou a ler

Deitada sobre cactos
As costas perfuradas
Lapidava estrelas

Era terra muito velha
Pisada pelos homens
Sagrada pelos mares

Deflorada por mil deuses

Mas do seu umbigo
Brotava um jardim
Todo santo dia

Espirais de cinco sóis
Escorriam em cada um
Dos fios dos cabelos

Sangrar era seu jeito
De encantar a morte
Em seu corpo verdadeiro

Da última vez que a vi
Estava completamente nua
Parindo poesias por todas as veias

terça-feira, 12 de maio de 2009

A visita


Ela chegou
Engolindo tudo
Com sua língua-mundo

Engravidou meus olhos
Espelhou o rei
Esquartejou azuis

Ressuscitou os mortos
Amamentou silêncios
Ofuscou até o mar

Louvou descaradamente
Os amores secretos
E disse: até amanhã

Hoje entre nós duas
Somente a poesia
E o Sol

segunda-feira, 13 de abril de 2009

La mer

"O fenômeno das marés é o efeito da atração gravitacional recíproca e simultânea entre o Sol e a Lua e as águas dos oceanos".

(Newton)


Veias expostas
Hemorragia azul celeste
Entre ossos de pedra

Se dá, se oferece de graça
Fome de saciar sedes
Água que não se basta

Come terras
E homens e rios
E tudo ao seu ventre
Volta eternamente
Numa dança diabólica
E santa

O mar é frágil como toda mulher

segunda-feira, 30 de março de 2009

Hoje


Hoje teu sorriso trêmulo
Enlaçado à criança devorada
Na fome antepassada do teu sangue

Jogou-se em meus braços
E morri contigo
Infantilmente casta de amor

Agora tuas mãos espelham meus lábios
Teus pais se recolheram ao leito
Minha boca se espalha em teus dedos

Imensa, mas sem dentes
Para que a eternidade não se apavore
Por hoje termos nascido juntos

segunda-feira, 16 de março de 2009

O jogo dos contrários


As coisas se quebram rapidamente
Como um pássaro canta na janela
Une todo o tempo e todo o céu
Dentro e fora do corpo. E vai.

Só as janelas ficam
Emolduram o vazio do mundo
A desnudez daqueles que andam

Sem pés, sem roupas há tanto
Canto à espreita da noite
Como um bicho no cio esquece a caça
Ao ferir-se de paz na hora do gozo

Danço, salto, deixo as janelas para trás
Os olhos escorrem nos cacos da vidraça
O fundo, o mar, a fragilidade do porto

As coisas se fundem rapidamente
Como mariposas na violência da luz

A ausência do pássaro também tem suas asas

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Antonio Porchia


"No, esto no es sueño. Pero si esto que no es sueño no se convierte en sueño no dura, porque de todo, de todo, sólo dura el sueño."

sábado, 21 de fevereiro de 2009

A despedida e o presente do pássaro

para Flocely

Para que mais corações?
As terras que se foram
São as mesmas que ficaram

Grávidas de outros solos
Pelos corpos que nelas gozaram
Seus tempos de luta pela vida

Os peitos intumescidos pelo vento
Se despedem como aves que pairam
Livres da missão de ir embora

Apenas voam

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

E quando a noite se foi...

para Juan Gelman


Enquanto meus mortos se perdiam em terras
Entristecidas aos pés de tantas sombras
As pedras no pátio cantavam as flores brancas

A pele tão jovem nem sabia do suor e do silêncio
Guardados nos gritos da casa ao lado,
sempre tão perto

Um dia nas sobras do mesmo teto
Brotou a sinceridade do jasmim

Todos os segredos naqueles corpos
Exalando meus próprios sonhos
Na rouquidão dos nossos cheiros

Foi tudo o que vi das armas e dos nomes
Que escondi sob os versos nas retinas

Todas as vozes cravadas na mudez da menina
Repetindo rimas sem rosto, hermanas varizes
Enquanto lhe acendiam na carne a eternidade das cicatrizes

E quando a noite se foi, o jasmineiro também ainda estava lá

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

A beleza


foto de Sama, tirada em 2015, postada aqui em 2016


Ele me olhava como se quisesse me roubar o segredo do umbigo primeiro, o caldo do éter primordial que me deu de presente um rosto e um corpo que se colocam antes de mim no espaço da vida míope das imagens. A imagem, esse general dos nossos tempos de novas ditaduras ocultas, carregado de sua própria luz e tão cheio do nada necessário para que apenas com a nossa própria escuridão se consiga olhar... Ele desejava a beleza como algo que se toca, que se pega, que se guarda nas mãos, sem conseguir ver que beleza e amor estão entrelaçados, emaranhados, nem sequer sobrevivem em duas palavras diferentes. Essa coisa que só se sente, não se vê exatamente. E eu, que cato o avesso, me agarro ao invisível e procuro o que não vejo, eu que não sei nada do exato, ia me perdendo do seu desejo.

_ Ravi, há pessoas, seus momentos, seus tormentos, razões ocultas que as fazem esconder sua própria beleza tão profundamente que terminam afeando valiosos reflexos sem perceber. Não procure em mim o que é de você. Quando deixaremos de ser tão idiotas? E aí me incluo porque o que penso nem sempre me guia. O belo? Sempre está em tudo na mesma intensidade com que o desenterramos desse vazio que levamos cheio do nosso dentro. O belo? É. A disposição para cavar é a primeira erupção antes do nascimento das asas. Mas a escolha pelo vôo depende individualmente, de cada um, e só pode ser ouvida quando aprendemos a lamber o silêncio com um prazer carnal. Bom, no final, que é também o começo, isso sempre acontece depois de qualquer espécie de orgasmo, às vezes na cara, às vezes na alma. A beleza? Você já se olhou no espelho hoje? Calma, antes de ir, use as unhas para rasgar as entranhas que te cobrem. Liberta os bichos que te comem e morde a vida com os dentes ensangüentados desse monstro mais bonito que todas as flores do mundo. Todas aquelas que chamamos de outras superfícies são reflexos das vertigens, do giro incansável que dançamos em outro tempo, por trás dos nossos pobres olhos. Ah, meu querido Ravi, se você reparar bem enquanto estou rindo, verá que os pedaços de carne e sangue que me sujam a face são o único alimento sincero desse rosto e desse corpo que exalo.

_ Se a beleza dói?

_ Dói tanto quanto a vida. Mas tudo dói, mesmo as alegrias, é que a gente acostumou a pintar a dor de cinza.

O espelho


Vi castanhos exaustos naquele espelho
Vazios dilatados por tantos ontens
que não cabiam no banheiro
nem na casa inteira, nem no mundo

Nadavam em si mesmos mergulhados
e se pintavam de silêncios

De tão cansados os lábios gritavam tãomente risos
enquanto o suor dos tristes, sal vivente nos olhos,
fecundava a terra seca do caminho

Vi folhas enfastiadas de carregar orvalhos
renascerem em danças derramadas pelo carinho
do vento que passava, simplesmente

Isso também reluzia no interior do espelho

que paria outro mundo desenhado nele mesmo

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Sobre a fome dos meninos e as sobras dos homens


Cem olhos engolindo as asas
Dos urubus sem penas
Na distância da calçada

Ossos brancos no saco
Claros como a paz. Fininhos, quebrados
Eram meus restos mortais

E todo sentimento, que lixo!
Mastigado na sobra dos pássaros
Devorando toda a fome do céu

De azul, só sobrou o saco
Porque era noite. E chovia