quarta-feira, 13 de abril de 2016

Alice

Hoje destino e acaso se uniram sem pressa, a sorte brotou com suas vestes mais belas e recebi de presente a presença de Alice. Havia em meu corpo até então vastidões da vida, distraidamente serena pensava nos encontros e desencontros, nas tristezas e alegrias, essas coisas que acendem a essência de um ser... Cuidando da alquimia possível da lágrima e do riso, do destravamento doído dos músculos tensos para refazendas em geral, quando ela se aproximou e pediu para ficar ao lado.

_ Oi, meu nome é Alice. Posso sentar com você?

Alice tocou o meu rosto e perguntou o meu nome. Eu disse. Depois me falou a sua idade: 13. Perguntou a minha: 40. Ela sorriu.

_ Um amigo me falou uma cena de um filme e eu amei a história, faz um mês que repito. O mar mora dentro de mim e toda vez que sinto um oceano em alguém eu me aproximo e peço uma coisa. Se eu pedir, tu faz?

Eu disse que sim, sem pestanejar.

Alice me pediu para fechar os olhos e imaginar que eu estava vendo o mar, segurou a minha mão e me fez descrever seus detalhes em tudo o que eu olhava... As vastidões de antes se acenderam de azuis e verdes e de tantas coisas mais... Depois das ondas, dos mergulhos, dos caldos, das águas sem fim, das algas, das baleias, das âncoras abandonadas sozinhas na areia, estávamos as duas emocionadas e a essa altura Alice tinha já deitado em meu colo... Confiança banhada pelo barulho do mar. Rimos alto, silenciamos, choramos, nos abraçamos, nos despedimos e marcamos um novo acaso, num dia qualquer. Agradeci o presente com o coração latindo alto e segui pelas ruas ardendo de sol, asfalto, buzinas e carros.

Conheci Alice num banco de praça, depois de uns passos no Mercado de São José. Dali não se vê nem um pedacinho do Atlântico sem ousar um tanto no desejo, na saudade ou no imaginar. Alice é cega desde que nasceu, tem o sorriso mais lindo do mundo, leva o mar por dentro do corpo e hoje me ensinou a vê-lo como se fosse a minha primeira vez...

terça-feira, 12 de abril de 2016

caminhando pelo Recife com a morte nos cabelos

ando cheia de abismos
para quem vive por poesia
é o nada mais fecundo
creio, aquieto

espero uma palavra
que me penetre o ventre e salte
atravessando teus escuros de passagem

tão antigos
e tão teus

sábado, 9 de abril de 2016

...

de todas as dualidades inventadas por nós
dentro-fora é a que mais me intriga


por isso caminho de poros abertos
e respiro acariciando o tempo

sexta-feira, 8 de abril de 2016

...

a vida está a um útero do nada
isso é vasto demais para ser frágil

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Dia de sombras

Amanheci má, desejando o bem a qualquer réstia, qualquer pó, qualquer coisa que se mova longe de mim... Indefesa e forte como a morte em todos nós... Cansada de tantos eus e meias palavras fantasiadas acordei mordendo os gatos da casa, rosnando mágicas como uma loba sem alcateia. A boca está cheia de pelos agora, o que é um bom alimento ao silêncio que precede o nada... E hoje é dia de não quero... Hécate, Medeia, Lilith, tudo pulsa fêmeo... Por Deus, não me peçam amor, não hoje, não aos meus cavalos soltos, cascos selvagens, correndo em alto mar... Asa de barata, veneno de cobra, uma pitada de currry e pimenta à vontade... Areia movediça, flores carnívoras e ervas daninhas... Plantar a 53ª árvore dessa vida, amassar o esterco com as mãos nuas, a bosta toda se espalhando entre os dedos, enquanto os pés misturam a terra às cinzas quentes da fogueira há milhares de anos... Só a Natureza pode entrar, a qualquer voz humana: Mantenha distância!

segunda-feira, 4 de abril de 2016

espiritualmente orgânico

no caminho da cura onde mais dói
é onde mais precisa ser tocado

honro, agradeço, massageando
com apreço meu nobre fígado
a transmutar todos os venenos

domingo, 3 de abril de 2016

meu querido Sertão...

não se fecha uma porteira sem sentir
tudo o que se deixa para trás

prefiro as porteiras
aos muros e às portas

a visão do fechamento não encerra
uma superfície sólida, ao contrário,
abre uma paisagem na saudade

vastidão e solidão
são coisas que me cabem

e se existem
como as flores no deserto