sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Confissões


Ainda não escrevi nenhum livro
Meus escritos estão em papéis livres
Sem capas, sem colas, sem páginas numeradas

Plantar até que plantei com zelo
Com mãos de água libertei sementes
Emprenhadas pela mesma terra fértil que me pariu

(Mas até hoje não sei das árvores, das raízes
Se frutos brotaram, se cresceram
Falhas de quem cultiva na infância
Sem conhecer portos, paradeiros)

Filhos também não tive, não nesse mundo
Abortei um anjo muito jovem
E todavía é ele quem canta para que venha o sono
Todas as noites enquanto voamos

Das violações marcadas a ferro no corpo
Em feridas expostas no fogo da alma
Troquei as memórias por belezas
Não esquecimentos. Assim cicatrizo

Desacorrentei da dor as lembranças
E das vísceras implodi risos
Espargidos em olhos alheios

Com um ano abri mão da minha mãe
Que daí então me cuidou livremente
Que dádiva aprender a andar tão cedo!

Muito não quis
Foi para soltar que me fiz
A segurar não fui ensinada

Lacerações cosidas com a minha linha da vida

Liberdades que distribuí por não carregar mais

Que merda! Então não sou nada?

Me falta a sabedoria do ter
Me falta a humildade do colo

Mas amei até morrer, como amei, como amo
Como tenho tanto ainda para dar ao mundo
No afago das minhas mãos escancaradas

Acariciando o perdão ao meu nada
Me faço o regaço do abrigo que me neguei
Para não amputar os abraços que recebi

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Uma certa escultura


Queria recitar um poema amarelo
Parido de cometas soltos no espaço
Mas não tenho nada em mim de belo
Para ir além da fronteira dos lábios
Molhados, vermelhos e cegos
Como uma cerrada porta talhada
Em pau-brasil num dia de chuva
De cortes por mãos de escultor
Que de ingênuo e palhaço
Plantou na cara-carranca um sorriso
Brotado de uma cabeceira de lágrimas
Endurecida em pedra maciça
Onde repousa o meu epitáfio

Que descanse em paz o pobrezinho
Ah, Epitáfio, para seres eterno deverias
viver não mais que uma quadra!

Vai Epitáfio, a vida é curta, mas nem tanto

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Anjo torto


Tantos corpos pelo chão
Tantos mortos nessas mãos
Tantos anjos cor de terra

Tantas bruxas e Vênus
Todas a mesma cara
Do espelho extirpada
A sangue, a ferro, a fogo

Diabos do mesmo ventre
Sereias da mesma água
Monstros da mesma casa

Cacos, recortes, pedaços
Nada sobra, nada fica intacto
entre os dentes do assassino

E ele voa, e ele dança, e ele voa!

Toda queda salva o louco
Arrebentado, costurado a cru no olho nu
Onde se esmera o sal do corpo

E o anjo torto
Na sede de regar as asas
Trepa a vida e vira o céu

Porque não é pouco lutar contra si mesmo e sair vitorioso

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Dádiva


O som dos meus passos
Uma percussão viva
Conferindo um tempo estranho
Ao canto atemporal daqueles pássaros

Que me davam de bom grado
Mais beleza ao silêncio

Que dádiva!

Enquanto imaginava o dia
Na estranheza dos meus pés
Entendi que todo belo
É precedido pelo vôo