quarta-feira, 23 de outubro de 2013

uma flor no asfalto

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quase fui atropelada
para roubar do asfalto
uma flor ao relento

espasmo e dádiva
num cinza sem volta

como esmagá-la
na memória
do que não vi
com seu amarelo tanto?

parti ao seu encontro
cheia de cegueira no passo
vento nos cabelos e nos seios
poeiras em festa por dentro

pisada de guerreiro
salvando o mundo

trouxe a flor para casa
esculpi o melhor dos jarros

viverá quatro ou cinco dias
alimentando meus olhos

e só agora me dou conta
da gravidade do gesto

esquecida no asfalto
com a morte mais perto
parecia mais livre

terça-feira, 3 de setembro de 2013

elogio da dúvida ou um dia feito à mão


beleza demais também dá medo
olhar o seu avesso às vezes
tem o mesmo nome

hoje do nada piamente
acreditei nos anjos

isso, também às vezes,
me acontece...

talvez o mar
talvez loucura

talvez em algum lugar
a vida seja mesmo
esse imenso bordado

terça-feira, 16 de julho de 2013

Rente


A morte...
outra vez perto
Dentro, como antes

Sem pesos,
apenas se diverte
Pisa e vive comigo

o chão nosso de cada dia

Ventre, avesso e certo
Rente, aqui

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Comediazinhas


"Se existem anjos
acho que não leem
nossos romances
sobre esperanças frustradas.

Receio que - infelizmente -
nem os nossos versos
reclamando do mundo.

Os espasmos e os gritos
de nossas peças teatrais
devem - suspeito -
impacientá-los.

No intervalo de seus afazeres
angélicos, isto é, não humanos,
assistem antes
às nossas comediazinhas
do tempo do cinema mudo.

Aos que se lamentam,
rasgam as vestes
e rangem os dentes,
preferem - penso eu -
aquele pobre-diabo
que agarra o que se afoga pela peruca
ou faminto devora
o cordão do sapato.

Acima da cintura peitilho e pretensão,
abaixo um camundongo assustado
na perna da calça.
Ó sim,
isso é que é diversão de verdade.

A perseguição em círculos
vira fuga à frente do que foge.
A luz no fim do túnel
se transforma num olho de tigre.
Cem catástrofes
são cem alegres piruetas
sobre cem precipícios.

Se existem anjos,
deveriam - assim espero -
estar convencidos
dessa alegria que oscila no terror
e nem sequer grita socorro socorro
porque tudo se passa em silêncio.

Ouso até imaginar
que aplaudem com as asas
e que de seus olhos caem lágrimas
pelo menos de riso."

(Wislawa Szymborska)

terça-feira, 18 de junho de 2013

Sobre a utopia do grito


Sou filha de 75
Ainda eram abertas as feridas
Nasci na cidade das flores
e no ventre que me fez
os jardins se estendiam por milhares de quilômetros
Mas já trazia na boca cicatrizes desconhecidas

Hoje me banhei de assombro
Amanheci utópica como nunca
As marcas de nascença no corpo nu
com nomes escritos em letras garrafais

Como você, sou mãe de um aborto
Como você, sou neta de um estupro
Como você, sou o sangue de uma voz
Ou seja, uma multidão
De carne, utopia e osso

Noite passada sonhei com uma multidão de minorias reunidas
Todas caminhando em meu corpo e nosso corpo era a alma do mundo

Amanheci gay e sou uma multidão
Amanheci mulher e sou uma multidão
Amanheci índia e sou uma multidão
Amanheci negra e sou uma multidão
Amanheci cigana e sou uma multidão
Amanheci como sempre fui...

Um velho silêncio impossível
Gritando como uma multidão


domingo, 19 de maio de 2013

Às cinco da tarde


Aos sorrisos da última ceia
paguei com a própria vida

Ossos ainda pulsam sobre a cama
espantando as crianças no berço

Choro e esperança se despem
Quase não ouço um ruído

Teria esquecido se assim me fosse dado
Se tantas lembranças não lavassem meu rosto
enquanto abro a facadas as cebolas do jantar

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Pegadas no espanto


Por que trocaria inteira
a memória dos gozos
pela dor da saudade
----------- (ou outra que venha)?

Que espécie de espasmo
marcaria em meu corpo
o que não é
----------- se o que foi é eterno?

Passado o presente, o futuro ainda

Esse demônio em meu ventre
ama tanto que fere...
Fere longe e aqui

Fere tão fundo em mim
que acorda os anjos do abismo
num canto sem fim
de perdão e mistério

Ah, vida, a beleza é teu risco!

No meu circo o trapézio
balança sobre o chão cru

Entre o vôo e o salto
a lágrima e o riso são
meu porto, meu parto e meu sangue...

Pegado na praia
do espanto descalço
sob os nossos pés

quinta-feira, 14 de março de 2013

Para ficar cara a cara com o amor


Deixa o sumo adocicado
escorrer entre os seios

Há que adormecê-lo
debaixo de sete palmos

Desatinar o inferno
antes de anoitecer

Vez por outra cantar
até esquecer o seu nome

Queimar os restos estragados
em rituais secretos de purificação

Regar sim, sempre,
mas sem muita sede

Voar é o mais importante
dos elementos em seu ventre

Tente lembrar-se disso com ternura
dia sim, dia não

Assim, com o tempo, ele vira corpo
e entranhado no outro, com sorte, vira árvore...