terça-feira, 30 de março de 2010

Conto de despedida


Ontem ouvi o homem falar do mundo seu, nosso, esse todo desconhecidamente íntimo que às vezes conseguimos dividir em pedaços.
Retinas feridas, miopias acesas, projetando sonhos, e perdas.
Dizia mais ou menos uns gostos, uns cantos, umas ranhuras cavadas na existência de ver a estrada, os rostos, as mãos, as lutas também.
Suas unhas sujas de barro me davam o chão suportável aos pés rachados de tanto vôo (com acento sim, porque escolho não tirar o pássaro ali de cima, sempre vi um pássaro nascido aprendendo a voar nessa palavra misturada ao ovo).
Estava partindo o homem. E só. Como todos nós.
Um minuto aqui e de repente não mais. O adeus.
Fiquei nua em silêncio, a boca lavada com aquele barro velho das suas carícias esculpindo memórias em desejos que já se bastavam sozinhos. Lembranças de línguas e dedos e pernas e braços, belezas suas, únicas, abraços, cacos unidos na eternidade do bom enquanto foi. O vento.
Deixou suas roupas no banco da praça e saiu cantando, uma música que ecoa aqui no oco do peito sempre que toco seu nome, feito de noites e sóis e auroras e mortes e vidas demais.

Essa angústia que rodopia no esquecimento é amor também?
É pra doer ainda?
E esse espasmo danado de não saber se choro ou se ajoelho...

Meu Deus, por favor, ensina-me a viver!

segunda-feira, 1 de março de 2010

Polinização


A moça sorria e fazia do vento nos cabelos
Um deslizamento de sonhos
(essas abundâncias de Deus)

Seu umbigo uma lua cheia no corpo
Se emprenhando de sol

Não lembro se estava em pé ou deitada
Molhada ou queimada do sal

Devorando um peixe morto
E de olhos abertos

Colhia o leite do aborto
Para alimentar outros fetos

Mais ou menos como uma borboleta
Só que respirando embaixo d´água