sexta-feira, 25 de junho de 2010

Silêncios abraçando gritos em meu país de muitas cores

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Talvez tenha aprendido com Mira, talvez antes, em outra esquina, já inspirando um sentimento sem nome, mas o fato é que hoje algo me invade quase o corpo inteiro, uma beira de verdade, se é que existe mesmo uma assim no singular: Às vezes, 0 x 0 é um grande resultado. Quando não se ganha nem se perde e ainda assim se troca, transbordam encontros...
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Onde assistirei ao jogo? O amado foi forrozar em Bezerros. Os amigos e a família estão numa euforia só nessa mistura de santo, futebol e feriadão e eu, bom, não ando com essa animação toda. Palmares, União dos Palmares, Barreiros, o juiz marcou impedimento, não dá para chutar a gol com tanta lama na canela... Mas Lula liberou milhões, as ajudas estão vindo de todos os lados e também não perdi nada com as chuvas além das lágrimas derramadas que não valem um tostão, apesar da fertilidade lavando o mundo. É ajudar e seguir. Não é justo não sorrir, não eu, que nesse caso, como disse Hannah Arendt citando Aristóteles, estou entre aqueles que, “não estando sujeitos à necessidade, podem devotar-se ao kalon, ao que é belo”.
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Brasil e Portugal na briga pela bola em terras de África! Também não vou ficar em casa entristecendo a lida. Brasil, África e Portugal, se redescobrindo... essa mistura-ventre de múltiplas e férteis sementes, lindas, já deu à luz muita coisa imensa. Apesar dos pensamentos de morte que guiam a história, o futuro sempre vem com suas metáforas preenchidas de desejos do passado.
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Vou pra rua! Quero o abraço do povo. Assistirei ao jogo com a multidão mestiça que nos habita. Quero o eco da fé dividida me acariciando a alma. Pego Galeano pela mão: “Os espelhos estão cheios de gente. Os invisíveis nos vêem. Os esquecidos se lembram de nós. Quando nos vemos, os vemos. Quando nos vamos, se vão?”.
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Camisa amarela e chinelos com a bandeirinha do Brasil nos pés (as mesmas sandálias gastas que aprenderam tanto junto com meus passos na sorte de escolher caminhos desconhecidos no barro do Oriente há um ano). Andar em dia de jogo do Brasil é uma dádiva, as pessoas são tomadas por uma educação patriótica de dar inveja a qualquer europeu. Um moço na bicicleta sorri e balança a cabeça num respeitoso cumprimento, uma senhora passa ao meu lado e dá um bom dia lotado de bons desejos, ninguém de cara feia, nenhuma pessoa, todo mundo se olha, se vê, se ri.
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Rua da Aurora, Conde da Boa Vista, Martins Júnior, Rua do Hospício... Conheço Dora Brasileira, Mira Brasileira, Amaro Brasileiro, não há outro sobrenome possível nessa família que se reconhece na imensidão, quando um país acorda inteirinho diante do mundo, lutando junto, com suas “vuvuzinhas” estridentes em verde e amarelo agitando os passos de pernas caminhantes em direções distintas, mas sob uma mesma camisa.
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Vendedores de bugigangas nem ligam para os passantes da Ponte Velha, conversam de amor alheios ao jogo, mas ainda assim vestidos com a torcida. Um velho cansado e de barba branca dorme sozinho, fedido, sujo, na praça vazia, mas seu short cor de Brasil anuncia uma esperança mesmo de olhos fechados. Na calçada em frente, entre peixes e aquários que provavelmente não serão vendidos nos próximos 90 minutos, uma TV fala da possível vitória, instalada numa parada de ônibus onde se encontram aqueles que antes estavam sós.
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A cidade vai se esvaziando, mas em cada canto onde há uma televisão ligada ou um radinho que seja, se aglomera uma pequena concentração de pequenos silêncios ansiando um grito único. Um casal de namorados ao longe torce do seu jeito, ela vestindo verde enquanto ele lhe acaricia os cabelos. Para o enamorado, o jogo mais importante de hoje é outro.
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Na Casa da Cultura, grades que ferem tantas lembranças torturadas, policiais se organizam e carregam os bancos onde dividirão com vendedores, recifenses e turistas as emoções de um Brasil e Portugal já vitorioso a essa altura, pelo menos aos meus olhos sedentos de milagres... Vejo, os milagres e as almas sorrindo.
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Ao redor de Solano Trindade uma multidão se reunia em frente a um desses televisores de muitas polegadas no Pátio de São Pedro. O poeta olhando a paisagem, de costas para o jogo, mas inteiro ali: “Ouço um novo canto, que sai da boca de todas as raças, com infinidade de ritmos... Canto que faz dançar todos os corpos, de formas e coloridos diferentes...” A alguns passos do povo, Mira, os únicos olhos tristes que o Recife me deu nesse dia de festa. Esqueci o jogo. “Miriam, Miriam, hoje a rua está vazia!”, gritou uma loirinha que passava correndo para não perder mais tempo da partida. O Pátio, de São Pedro e de Solano, também alberga Miriam em sua vida a céu aberto, mas ela não conhece a poesia, penso. Repenso, será?
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Um saco de pão velho ao lado e os olhos no chão, calados. Troquei o meu pedido de gol pelo apelo por uma alegria para Miriam, invoquei todos os pais brasileiros, orixás, santos, João, Pedro, Antônio, os homens e os anjos, por essa esmola ao meu dia que ia tão bem até ali. Procurei um lugar que tivesse uma comida gostosa, conheci Dora, mãos de mãe, avó e cozinheira, pedi uma galinha caprichada e decidi almoçar com Miriam. Quando voltei, ela sorriu, disse que eu podia chamá-la de Mira e me falou com alegria: “Que bom que hoje não está chovendo!”. E continuou cutucando seu bicho de pé com uma agulha enfeitada de fitas coloridas, em silêncio.
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Contrariando a previsão do tempo do noticiário de ontem na TV, o dia está mesmo lindo. Pego Galeano pela mão, agora melada e alimentada graças à galinha com feijão que Mira dividiu comigo: “Os espelhos estão cheios de gente. Os invisíveis nos vêem. Os esquecidos se lembram de nós. Quando nos vemos, os vemos. Quando nos vamos, se vão?”...

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Algun día...

------------------- Roberto Juarroz

Algún día encontraré una palabra
que penetre en tu vientre y lo fecunde,
que se pare en tu seno
como una mano abierta y cerrada al mismo tiempo.
Hallaré una palabra
que detenga tu cuerpo y lo dé vuelta,
que contenga tu cuerpo
y abra tus ojos como un dios sin nubes
y te use tu saliva
y te doble las piernas.
Tú tal vez no la escuches
o tal vez no la comprendas.
No será necesario.
Irá por tu interior como una rueda
recorriéndote al fin de punta a punta,
mujer mía y no mía
y no se detendrá ni cuando mueras.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Um canto

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Vem tristeza
lambe o meu corpo inteiro
Não quero que me salves
nem a pele, nem o ventre

Nem o oco que te alimenta
Cão faminto insinuando o rabo
Me pedindo afagos
de olhos vermelhos

Loba amamentando gentes
Aos dissidentes do amor demais:

------------------------------ Covardes!

Quero as marcas dos teus dentes
Tua língua fluida de facas

Aguar o mundo com as veias
é o meu jeito de semear
a única decência
tatuada em meu riso vulgar
e esquelético

E de parir arco-íris
infantilmente nua
sob a insistência deste sol
que te sufoca
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