segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

clamor




eu não estou nua
nasci nua e naturalmente
exerço esse estado todo dia
mas aqui, agora, enquanto falo
não, eu não estou nua

se estivesse, a polícia talvez
invadisse meu corpo,
o teatro, o museu, a casa
e me levasse algemada
braços forçados para trás

cobririam meus peitos e o sexo
com um pedaço de pano
ou um casaco qualquer
(dariam um jeito de achá-lo
entre os presentes)

seria escandaloso, obsceno
vergonhoso para alguns até
já não se pode mais
despir-se e olhar nos olhos
a arte é uma arma perigosa

não, eu não estou nua
o que você imagina sem ver
é o bicho que sou
clamando na voz apenas
na palavra, a sua nudez inata

uma oração ao milagre
de sermos corpo no mundo
e podermos sentir o vento
e a luz por todos os poros
...quando estamos nus

quanto ao estupro
nosso de cada dia...
insisto despindo o avesso
enquanto carne, viva
em sua nudez inata

sábado, 13 de janeiro de 2018

degeneradamente viva


quando em casa já não se assa o pão
e a vontade de partir não é suficiente
para simplesmente abrir o gás

o forno fechado é um buraco
e esquecer de mim é tão fácil
quanto a fecundação dos vermes

ainda assim, a luta me precede
a beleza entranhada nos ossos
no enjoo, no cheiro da podridão

a violência da voz proclama
a loucura do que pode nascer
dentro de tudo que não se vê

seja eu, outro ou você
apesar da gente, apesar do mundo

a vida pede passagem, ainda
o pão quer o gesto das mãos

amassando o encontro, punhos ativos
e o calor aceso de alguma entrega

seja amor ou grito
escuto e rasgo
como se fosse meu

gostaria de não existir tão crua agora
mas hoje libertei um assombro inato

degenerada como sou
uma igual também
entre os vermes que mato

e a força do que pode nascer
dentro de tudo que não se vê