Porque estou gritando agora e ninguém me ouve. Porque eu mesma ainda não escuto toda a minha voz. Porque o meu sussurro jorra dores e paz. Porque não há razão nem loucura. Porque não quero. Porque quero mais que sempre. Porque sou. Porque me atirei do vigésimo andar e descobri que sei voar. Porque nunca fecho as janelas da casa. Porque não sou. Porque danço com a música imprevisível do vento e não caio, despenco e volto. Porque amanheço quando morro. Porque meus olhos não escondem segredos. Porque o coração canta, soprano, no mais alto tom que alguém já cantou. Porque decifro vozes que se foram, sem medo. Porque não desisto apesar do pranto. Porque não me calo e sou amante do silêncio ao mesmo tempo. Porque choro baixinho para regar o mundo todos os dias. Porque ainda não tenho todas as flores em mim. Porque pinto jardins de sonhos em qualquer parede. Porque há calos em minhas mãos e gosto, nos pés também. Porque todos os alados são minhas asas, mesmo os urubus, mesmo os anjos, os demônios, os rouxinóis e os beija-flores. Porque corto as unhas bem curtinhas para não rasgar o véu delicado da vida. Porque ando devagar, giro, salto e corro. Porque nunca paro para rezar e rezo o caminho todo. Porque não há salvação, mas existem belas veredas. Porque não chamo o amor e carrego o seu nome nas veias. Porque as vísceras são desenhos incertos traçados por estrelas cadentes na barriga. Porque o sangue não coagulou ainda. Porque não acredito na eternidade. Porque levei quarenta anos para me conhecer e todo dia descubro que sou outra e sei que é tarde demais para encontrar o não-existo. Porque não há explicação. Porque busco a sinceridade com a fome de um recém-nascido para suportar todas as mentiras e sou honesta para comigo mesma de uma maneira quase cortante. Porque dói cortar os pulsos, mas não tenho pena de ir-me. Porque errei tantas e tantas vezes e estou pronta a errar de novo. Porque adoro viver só por saber que tem um fim. Porque amo simplesmente. Porque meu ventre está repleto de pólen. Porque a insanidade queima e a lucidez também. Porque meu corpo não me pertence e é todo meu. Porque a beleza é e os feios estão apenas. Porque acredito. Porque não creio em nada somente para descobrir avessos. Porque facilmente esqueço das coisas para me espantar infinitas vezes com os mesmos milagres. Porque guardo os bons momentos na pele para sentir o cheiro das alegrias quando suo. Porque os perfumes do caminho constroem mais do que as palavras escritas. Porque os dizeres mais dentro são sempre mais belos, mas só estando nu e descalço é que se consegue escutar. Porque existem brilhos mesmo no mais negro breu. Porque há sim passarinhos que entoam músicas divinas para as estrelas e outros que chegam para beijar a aurora. Porque a lua muda toda noite. Porque fico muda de dor e ainda canto. Porque não gosto de anestesias. Porque fui feita de carne crua, mas cravei plumas em minhas costas e encontrei um socorro. Porque nunca se tem volta. Porque basta mudar o foco para acariciar novos céus. Porque não nasci de cesariana, eu vim. Porque se pode sentir o gosto de tudo mesmo usando apenas o olfato. Porque quando era criança olhava incansavelmente para o sol sem medo de ficar cega, na esperança de reter a luz nas retinas e doá-la ao redor quando preciso. Porque ainda hoje tenho pensamentos de infância e me agarro a eles com a força da minha alma velha e cansada. Porque me alimento da lama também. Porque não sei de nada. Porque o mar não morre. Porque nem todos os grilhões conseguem amarrar um espírito que masca pedaços de liberdade colhidos nos pequeninos instantes. Porque muitas coisas ainda não têm nome. Porque as lágrimas escorrem é do peito. Porque o riso é possível. Porque vale a pena. Porque sou nada. Porque tudo é tão simples quanto se pode ser. Porque sou bicho de natureza azul, vermelha, amarela, branca e negra, e honro. Porque me acendo e apago muitas vezes num movimento de rotação. Porque posso matar sedes que desconheço. Porque mesmo um beco sem saída sempre vai dar em algum lugar, basta saltar os muros. Porque os pássaros acordaram para contar a qualquer um os mesmos segredos que melodiam às manhãs. Porque a toda noite estão presas incontáveis estrelas e quando vão embora deixam o dia como regalo. Porque anoitecerá de novo. Porque ainda há muito a fazer. Porque a poesia jamais terá fim. Porque somos apenas um intervalo. Porque sim, porque sim...
sexta-feira, 29 de dezembro de 2017
sábado, 3 de junho de 2017
canto aos que não amo e para um homem bom
cantai
por mim
oh
coração em desespero
para
que eu encontre o perdão
em
minha sensibilidade morta
devo
muito aos que não amo
e é
por eles que choro, ainda
era
eu o animal
abatido
em ritual
a
lavar teus pesadelos
era
meu o sangue oferecido
escorrendo
em teus cabelos
manchando
as pedras da calçada
o
corpo, o chão, era eu...
também
sou da falange dos outros
e
danço com todos eles
acostumei
desde cedo
à
voz rude do inferno
Jesus!
não
te posso dar
toda
a fé dos meus pés
(não
suportaríamos tanta luz)
cantai
por mim
oh
coração em desespero
para
que eu encontre o perdão
em minha
sensibilidade morta
terça-feira, 28 de março de 2017
da febre do osso lacrimal
(em
noite de Lua Nova, escura, misturada)
nômade
do deserto
movedora
por sina
tecedora
de caminhos
criatura
divina
quem
te falou
que
era seguro nascer?
chora
criança, chora
o
choro ajuda a acordar
quando
os pesadelos pesam
mas
chora com doçura
que
o sal não morre
enquanto
houver o mar
quarta-feira, 22 de março de 2017
oferenda à paz que afaga a agonia
nos
foi dado gritar
e
arranhar com os dentes
nos
foi dado um corpo
com
tantas inquietações
nos
foi dada a existência
com
tudo o que pensamos verde:
folha,
musgo, mar, gafanhoto
inventamos
a palavra
suas
escravidões, perfurações
transmutações,
suas lambidas
nos
foram dadas unhas
para
seguirmos cavando
nos
foi dado tanto
nos
foi dado muito...
enquanto
arde a matança
é
violenta a esperança
nos
foi dado gritar
e
arranhar com os dentes
nos
foi dado um corpo
com
tantas inquietações
nos
foi dada a existência
com
tudo o que pensamos verde:
folha,
musgo, mar, gafanhoto
dói,
todo dia, às vezes...
e agradeço
o milagre
chorando
por nós
a
lâmina em riste
para próxima dança
cabeça
erguida
pés
firmes no chão
olhando
de frente
para
tudo que sangra
te
ofereço meu fígado
com
minhas próprias mãos
pega
querido, come...
é
de coração
mas
caso a guerra insista
posso
dormir tranquila
entre os assassinos
caso seja uma escolha
posso dormir também
entre os seres que matam
entre os assassinos
caso seja uma escolha
posso dormir também
entre os seres que matam
segunda-feira, 20 de março de 2017
desejo de lua minguante
quero
abrir a porta da rua
e encontrar
gente
pulsando
com o vento
essas
caras perdidas
entre
mentiras e meias palavras
ainda
e além, me deixam cansada
quero
multidões de corações
em
carne viva, pulsando
quero
só essa imagem fútil,
pobre
de tão gasta
sexta-feira, 10 de março de 2017
minha humanidade possível
sou
da falange dos fracos
loucos
do sentir
enquanto
grito e resvala
o
sangue na pele, ainda
olho
as minhas garras
meus
dentes que pingam
invoco
deuses estranhos
duvido
de todos eles
calo
sacio
as mãos no vento
evoco deusas sombrias
me abismo
me abismo
e lembro de nós
sangue
endurecido
cheira
a ferro e cicatriz
enquanto
ninguém morreu
...
ouço
as solas dos pés
corro
solta na água
o
som dos cascos ecoa
caio
sou
da falange dos fortes, também
e
mordo porque acredito no amor
domingo, 8 de janeiro de 2017
violentamente viva
se
bater
revido
e
aviso
sou
muito perigosa...
só
que no dia-a-dia
preencho
força de amor...
nada
especial
um
tipo de amor simples
que
gero, gesto e danço
entre
milagres e espasmos
incluindo
os ossos, as marcas
a pele,
as dores e as pedras junto
tem
sido um belo escudo
e
uma bela espada
a
cantar em tudo
“meu
tempo
é quando”
é quando”
sexta-feira, 6 de janeiro de 2017
Para(á) no corpo
(para Thales, hoje)
a
infinitude das margens
parindo
um milagre todo novo
abrindo
uma beleza inaugural
da
violência divina em meus olhos
vastidões
de transbordamentos
no
giro incansável do corpo
pele,
músculos, sangue, ossos
memórias,
pulsos e acasos
ajoelho,
rio e choro
por
tudo que amanhece aqui
entre
ocasos e esperas
na
voz de uma imagem sem antes
invocando
lonjuras amazônicas
de
águas doces em mim
quinta-feira, 5 de janeiro de 2017
saturno em câncer
e
eis que num dia comum
nublado
como tantos
dei
de nascer sem querer
amando
tudo o que me move
como
um cavalo selvagem
e
aquele vento-crina
no
ritmo dos cascos
na água
na água
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